domingo, 31 de janeiro de 2010

Capítulo 1

E naquele março história recomeçava. Cambridge amanheceu silenciosa e absorta. O frio e o céu monocromático acentuavam a melancolia daquela manhã. Alheia e bem aquecida, Susan dormia profundamente. A leveza do sorriso, antagônica à expressão grave da cidade, revelava o contentamento inconsciente de um sono tranqüilo. A respiração cadenciada, a inocência... Não fazia idéia do que enfrentaria dali em diante. Despertou, enfim, e ainda entre o sono e a vigília, permaneceu quieta, tentando prestar atenção na chuva que ameaçava cair. Sorriu ao escutar uma melodia já conhecida. Abriu os olhos, devagar, acostumando-se com a claridade e, por fim, se levantou. Caminhou lentamente até a janela, tomou o rouxinol nas mãos, aconchegando-o em seu ombro, logo em seguida, e repousou os braços no parapeito da janela. Quase ninguém nas ruas... A copa da árvore de cereja floresceu mais intensa de cores esse ano. A vida acadêmica complexa lhe roubava o tempo. Esquecida de si ela refletia... No meio do caos, já não era ninguém, já não sabia o que a levara até ali. Exatamente há um ano voltou a viver, mas os estudos lhe consumiam... E ele? Onde estava? O vento a arrepiou, trazendo à tona que o dia começara. Levada pelo canto do pássaro ela parou, pela primeira vez, para refletir. Em tanto tempo...

Caminhou sem pressa rumo ao banheiro. Talvez um banho quente despertasse o que ainda lhe restou de razão. A desordem de pensamentos lhe fez rir. Decidiu pensar em coisa alguma, contemplar o inexistente. Mas o exercício foi em vão. Viu-se cantarolando e assim permaneceu, enquanto o jato forte e bem distribuído lhe relaxava os músculos. Fechou o chuveiro, enrolou-se na toalha e seguiu para o quarto, sussurrando algum poema lírico. Com o corpo ainda úmido, colocou o primeiro vestido que encontrou no armário e assim, peça por peça, foi se desprotegendo do frio, que adorava sentir. Por fim, vestiu o casaco e soltou os cabelos, que o vento se encarregaria de despentear.

O banquete já a esperava: frutas, chá, torradas, marmelade e o típico pudim de pão e manteiga, em camadas de frutas secas e creme. Como de costume, Susan sentou-se à mesa, recusando-se a usufruir de tudo aquilo. Sentar-se à mesa ao lado da indiferença tirava-lhe qualquer resquício de fome. Uma maçã e uma xícara de chá estavam de bom tamanho.

- Bom dia! – Saudou os pais enquanto sentava-se à mesa.

- Bom dia! Dormiu bem?

- Sim! E você?

- Também.

- Não venho para o almoço. Tenho que dar uma olhada nuns livros pra pesquisa, e vou aproveitar o intervalo.

- Você não larga os estudos nem por um minuto?! – Questionou a mãe.

- Deixa ela, Hanna. – Daniel interveio na conversa, sem tirar os olhos do jornal. – Esse entusiasmo todo passa.

- Entusiasmo, não! Compromisso. – Odiava quando ele fazia pouco caso dos seus estudos. – Se a sua vida se resume à alta do dólar, não serei a primeira a contrariá-lo.

- Pois acho que você deveria fazer o mesmo! Tem um patrimônio a zelar quando eu morrer. Me critica, mas quero ver você se privar dos seus pequenos luxos!

- Escuta aqui! Você sabe muito bem que não peço um centavo pra você desde que escolhi me envolver com a universidade!

- Enquanto estiver sob o meu teto...

- Pois bem! Vai chegar o dia em que eu não vou precisar de você pra nada! Eu já to de saída pra despoluir o ar que você respira.

- Parem com isso já! – Repreendeu Hannah. – Já vão começar um conflito a esta hora da manhã?

- A arrogância dele não tem limite! Fazer minhas próprias escolhas o incomoda tanto porque nenhuma de suas ações foi por vontade própria!

- Morda a sua língua antes de se dirigir a mim desta maneira.

- Ótimo! Manterei a sua hipocrisia intacta!

- Já chega! Você tem o direito de seguir sua vida da maneira que quiser. No entanto deveria escutar o que seu pai tem a dizer. Mudando de assunto, receberemos um novo estudante.

- Ah! É? - Disse Susan, sem muito interesse.

- Sim, ele vem de Nova York. – Hanna disse, animada.

- Jura?! Nova York?! De Manhattam? Aposto que sim. Pelo seu entusiasmo, presumo que seja um brilhante economista que futuramente assumirá os negócios do pai – ironizava, pois sabia que era algo deste tipo que Daniel sonhou para ela.

- Algum problema?

- Não!

- Então porque o discurso?

- Por que não preciso de mais um americano arrogante e prepotente dizendo o que devo ou não fazer. Duas já me tiram do sério. (Prudentemente excluiu o pai desta lista)

- Pois devia se espelhar em suas irmãs. Elas, sim, se importam com o investimento que fiz em vocês três. Só você não dá a mínima. – Daniel tinha que atormentá-la mais uma vez!

- Tá... Já cansei desse seu discursinho piegas. Quando chega o tal nova-iorquino?

- Hoje. Respondeu Hannah.

- HOJE? Susan, que bebericava sua xícara de chá, engasgou. – O fulano chega hoje e ninguém me fala nada? Tá... O que eu tenho que fazer? – Perguntou, indignada.

- Você irá buscá-lo no aeroporto, às três horas.

- Ah! Não brinca! Tenho aulas importantes hoje. Manda outra pessoa ir no meu lugar.

- De jeito nenhum! Esbravejou Daniel. – Você irá buscá-lo, pessoalmente. E trate-o bem. Ele se hospedará em nossa casa. Não quero problemas por aqui.

- Só me faltava essa. Eu vou, mas não faço a menor questão de ficar fazendo sala pra esse sujeitinho. Deixa eu ir. Se não me atraso. - Saiu pisando duro, inconformada com a encrenca em que a meteram.

Respirou o fundo e colocou o pé esquerdo pra fora da porta. Caminhou, sem pressa, pelas ruas de Cambridge, pensando no que poderia ter sido, mas não foi. Parou, de repente... Sorriu de olhos fechados, e rodopiou, de braços abertos, sentindo o vento frio acariciar o seu rosto. Como se não estivesse sozinha, quase pôde jurar que o viu passando por ali. Piscou pra ela, sorrindo, e sumiu rua adentro. Susan suspirou e, enfim, abriu os olhos. Viu, diante de si, uma macieira cravejada de frutas. Pegou uma delas e contemplou o nada. Onde será que ele está? E ela? Pra onde ia? Pegou-se distraída, com a maçã intacta, em uma das mãos. Na outra, um livro que encontrou, por acaso, na estante. Avistou, de repente, um banco, avançando em sua direção, involuntariamente. Sentou-se e passou a folhear a sua vida. A sensação, vivida há um ano atrás, pareceu ganhar cor, novamente. Inspirou o ar e virou a página. Viu seu destino sendo traçado. Na outra face da folha, o encontro. Viu duas vidas encruzilhadas e um castelo em ruínas se reconstruir. Era ela que renascia. E ele? Onde estava? Tornou à página seguinte: em branco. “Onde ele está?”. Olhou o relógio sem se importar. Havia tempo suficiente para chegar sem atraso. Tratava-se de uma ampulheta atemporal, em que os grãos de sua existência se esvaíam em um bojo de cristal. A historia recomeçava...

Levantou-se do banco e seguiu a trilha que a conduziria à Universidade. O mecanicismo, fruto da rotina, a guiava pelas ruas da cidade britânica, mas sua mente perambulava por Veneza. E assim, revisitava o seu passado não distante. Sem perceber atravessou os portões de Cambridge University.

- Oi, Susan! Tudo bem? – Como ao despertar de um transe, observou as cores ganhando vida e os sons em harmonia caótica sem quase entender o que se passava. E de repente notou-o ali, diante dela. Abriu um sorriso e o abraçou, sendo retribuída.

- Steve! Tudo bem? – Perguntou ainda aconchegada nos braços do amigo.

- Opa! Melhor agora que você chegou! – Brincou com o cabelo dela e soltou-a pouco a pouco.

- Quer uma maçã? – Ofereceu ao amigo, que sorriu, recusando em um gesto delicado.

- Queria te mostrar uma coisa. – Revirou a pasta até achar um papel pautado. Entregou a ela, que tomou a folha nas mãos, atenta ao conteúdo do papel. – É uma sonata em lá maior. Passei dias escrevendo.

- Ah! Sim. Você havia comentado a respeito. – Antes atenta à partitura, encarou-o sorrindo. – Quero muito escutar. Podíamos nos reunir no fim de semana. Poderíamos fazer um jantar entre amigos, aí você aproveita para nos mostrar a sua nova música.

- Curti a idéia. A gente marca, então. Pode ser no sábado, depois da reunião do grupo de estudos. A gente passa no mercado. Que tal um fondue?

- Ah! Genial! Por mim, fechou! Por falar em grupo de estudos. – Procurava algo em sua bolsa. Tirou de dentro dela um livro. – Achei no meio das coisas do meu avô. É um livro do Baudelaire. Eu não conhecia, aí fui ler pra descobrir do que se tratava. Gostei muito. Quando você tiver um tempo, dá uma lida nos poemas. Vale a pena! – Estendeu o objeto.

- Opa! – Pegou o livro, interessado. – Parece interessante. – Li alguma coisa desse autor, há um tempo atrás. Lembro que curti, mas acabei não procurando outros textos. É uma oportunidade. Valeu pelo livro. Vou ler com carinho.

- Vale a pena. – Olhou no relógio, mas não fazia diferença. – Acho que ta na hora. – Constatou sem o menor entusiasmo e cruzou os braços. – Você não vai entrar?

- Vou. E você? Não vai, não?

- Não faz diferença, faz? – Respondeu na maior calma.

- Como é que é? – Olhava-a atônito.

- To decidindo.

- Susan! Essa eu não entendi.

- Não há o que entender. – Será que cansaço, tristeza e Susan também integravam o mesmo campo semântico?

- O que tá acontecendo? – Começava a se preocupar.

- Já se passaram cinco minutos.

- O que tá acontecendo? – Insistia.

- Eu não sei. – De fato, era indecifrável.

- Essa Universidade é a sua vida!

- Não nego que seja.

- E então?

- Vá pra aula.

- Você também! – Depois da surpresa vinha a escassez de paciência.

- Tanto faz.

- Sendo assim...

- Sendo ou não sendo, não faz diferença.

- Então vamos.

- Pois vamos, então.

- E que assim seja!

- Amém! – Estendeu-lhe a mão e conduziu-o até a sala de aula.


Tudo igual. Absurdamente previsível. Entrou, vagarosamente. Medo? Talvez. Angústia? Certamente. Motivo? Indecifrável. Sentindo-se suspensa, Susan se sentou. Olhou o quadro, mas não viu sentido. Steve, sentado na carteira ao lado, olhava-a de soslaio. A parte o susto, sabia que havia algo errado. Qualquer um ali sabia o que a Universidade representava para Susan, inquestionável a dedicação e o afinco com as questões acadêmicas. Mas será que não lhe passava pela cabeça a perspectiva de mudança? Essa era a pergunta que a faria calar. Questionava a si, incessantemente, sem chegar a qualquer esboço de resposta.

Olhou o livro sobre a mesa. O Castelo dos Destinos Cruzados. Mergulhou naquele universo... Cada carta do tarô sobre a mesa representava uma incógnita. Mas todas elas mostravam apenas um rosto. Susan afagou o papel, pensativa. Estava em uma taverna longe dali. Estranhamente segura ela caminhava por um corredor de espelhos que distorciam sua imagem e dessemelhança. No final dele, uma porta. De repente lembrou-se de quem procurava e sorriu, reticente... Sorriu e sorriu mais ainda. O fractal refratando a neve, o vento cortando o rosto, o afago improvável. A areia ébria de Gaiman ainda escorria pelo vidro. Noutro instante um homem chorava, na janela, Susan soube. Daria tudo para estar ali novamente. Fechou o livro, amparou o rosto sobre a mão e se deixou observar as pessoas, atentas à explicação do professor. De repente o sinal interrompeu o transe. Enquanto os alunos se apressavam em deixar a sala, Susan permaneceu ali. Quieta. O silencio repercutindo nela, até que Steve lhe chamasse a atenção. Ele estava ali, diante dela. Puxou uma cadeira e sentou-se de frente para Susan, encarando-a bem no fundo dos olhos.

- No que pensava? – Perguntou, enfim, tendo o olhar correspondido.

- No que poderia ter sido e não foi! – ele riu, contido.

- O que teria sido?

- E o que não teria? - Ele a olhou com o canto dos olhos. Ia responder, mas hesitou. Ela prosseguiu. – Veja o destino, aqui traçado. E abriu o tabuleiro de cartas, do fim do livro.

- Onde está o ceticismo?

- Intacto!

- Olha, Susan...

- Eu não sei, Steve. Hoje eu estou contemplativa. Melancólica, talvez. Mas, estranhamente, feliz.

- Tava pensando nele...

- Faz um ano... Sabe, Steve? Eu tive minha vida de volta, mas foi preciso muito tempo para perceber isso. Quais são os meus objetivos? Aonde quero chegar? Por qual razão?

- É preciso que você reflita...

- Será que eu não vim me negligenciando?

- Talvez.

- Ah! Eu... Eu queria poder ter a chance de voltar atrás...

- É o velho clichê...

- É o clichê revisitado, quase clássico. Como é que seria?

- E porque não assim?

- Eu teria feito tudo aquilo novamente, quantas vezes fossem necessárias.

- E se arriscaria desnecessariamente em todas elas.

- Ele merecia viver.

- Ele quem, Susan?! Ele quem?! – Vociferou, exaltado

- Eu não sei.

- Não, você não sabe! – Abrandou o tom de voz. – Susan...

- Isso me fez bem.

- Aprecio a sua coragem. Admiro-a, até.

- Eu não sei por que tocamos no assunto.

- Nem eu! – Risos.

- Sabe, Steve. – Segurou sua mão, afagando-a, logo em seguida. – Eu quero mudar a perspectiva.

- Vai precisar de ângulo, luz e sombra. – Fê-la rir. – E qual é o sentido da vida, afinal?

- Deixa pra lá!

- É, vem! Vamos tomar um café!

- Chocolate quente?

- Fechado! – ela sorriu pela resposta e ele, de contentamento. – Pegou-a pela mão, guiando-a porta afora.


- Friozinho bom pra tomar um chocolate quente bem cremoso e contemplar os matizes do jardim.

- Melhor ainda, aqui contigo. – Esfregou as mãos, para aquecê-las, e em seguida pegou a xícara, com uma das mãos. Com a outra, acariciou de leve o antebraço de Susan. Estavam de frente um pro outro. E então reparou nela. A respiração cadenciada. Ela se distraia com um pássaro que brincava por ali. Enfim, depois de um ano, via-a se reerguer e seguir em frente, depois de tanto sofrimento. O que mais teria que suportar? – Sue?

- Sim. – Respondeu sem olhá-lo. O pássaro ainda a entretinha.

- Pensei que pudéssemos acampar.

- Acampar? – Por fim o encarou.

- Sim. Podíamos, sei lá, observar a natureza, tocar violão...

- Ia ser genial!

- Ia ser muito louco! Chamar a galera, fazer fogueira.

- Fazer amor...

- O que? – O sorriso enlanguesceu. O espanto de verdade era em tom de brincadeira. – Susan Hirst falando de “amor”? – Ela revirou os olhos e riu.

- Ah! – Enrubesceu. – Talvez seja uma ocasião propícia para quem procura partilhar algo tão importante.

- Sabe que eu adoro o seu lirismo?

- Uns tocam lira, outros... Violão.

- A que se refere? – Cruzou os braços e relaxou na cadeira. Encarou-a com os olhos semi-cerrados. O desafio era bem vindo.

- Pensei que talvez pudesse convidar Giulia pra viajar com você. – Olhava para a xícara até encará-lo, também.

- Um bom vinho, lareira...

- Talvez fosse a hora de trazê-la pra si.

- Quanto a mim, resolvido. Quanto a ti, que companhia seria perfeita? Creio que italianos apreciem um bom vinho. – Foi a vez de Susan ser convidada a argumentar.

- Não nega que a quer bem?

- Não nega que o quer bem?

- Improvável que o encontro venha a se concretizar. Agora você, agradeça pela oportunidade e honre-a!

- Não é tão simples como você pensa.

- É mais simples do que você possa imaginar.

- Quisera eu ter a mesma coragem que você.

- Certamente enfrentou situações mais penosas e menos nobres.

- Quem sabe.

- Sabemos muito bem!

- Já chega! Aonde quer chegar com o seu jogo de palavras?

- Vocês precisam conversar.

- Acabou, Susan. Acabou!

- Ah! Não acabou não! Não acabou mesmo!

- Só porque você vislumbra uma ilusão, não significa que saiba o que está falando.

- Tenho certeza e posso provar.

- O que você espera que eu faça?

- Porque é tão difícil assumir o que você sente?

- Ah! Logo você, que jamais expressa qualquer sentimento...

- Teria sido mais feliz se soubesse me expressar. – Desviou o olhar do dele. Tomou fôlego para prosseguir, mas não o fez. Respirou fundo e, enfim, arriscou. – O que houve entre vocês foi muito especial para terminar assim.

- Eu sei Sue. – Lamentava, no íntimo. – Eu sei. Mas tudo terminou tão em paz... Me pergunto se vale a pena arriscar uma amizade tão sólida.

- É amor, Steve!

- É amor! Não nego que seja. O nosso amor evoluiu, mas de uma maneira diferente.

- O sentimento se fortaleceu. É bobagem negligenciar isso. Amizade?! Que relacionamento sólido não se baseia em amizade? Confiança, respeito, entrega...

- Entrega... – Ele sorriu, pensativo. Nessa hora se lembrou das suas mãos passeando pelo corpo dela, de vê-la feliz com a carícia. Da vez em que olhavam a lua, na varanda. De quando discutiam a lírica de Shakespeare. De quando tocava violão. Quase pôde sentí-la beijar-lhe o ombro e enfim adormecer nos braços dele. Piscou saindo do transe. – É. Talvez valha a pena reviver tudo isso. - Fez a amiga sorrir.

- Vai valer a pena.

- E você?

- Ah... Uma hora acontece. – Respondeu, dando um gole na bebida.

- Tá na hora de conhecer gente nova, Susan.

- Eu sei. – Aquilo era desânimo?

- Vamo lá, Susan. Precisamos sair. Você precisa espairecer. Vamos escutar rock’n roll. Abriu um pub bem legal, aqui perto.

- Opa! É mesmo? – Questionou, com interesse.

- Só rock’n roll. Só clássicão!

- Podemos marcar.

- Demorou! Esse fim de semana o fondue. No outro, balada.

- Fechou! – Respondeu, sorrindo. – Bem, que horas são?

- Quinze pras duas.

- Já?!

- Sim. Tem pressa? A palestra começa daqui a meia hora. Dá tempo.

- Infelizmente eu não vou ficar.

- Nossa! Por quê?

- Chega um novo estudante. Se hospedará na minha casa. – Revirou os olhos.

- E?

- E, que os meus pais só me avisaram hoje, acredita?!

- Pena que cê vai perder a palestra do David Crystal.

- Pois é! Isso que eu não entendo! O que custava me avisar antes? O cara vai pra minha casa e eu tive sequer o direito de opinar.

- O que cê ia fazer? Melar o lance do cara? – Cruzou os braços e a encarou, bem sério.

- Não. Isso não. – Defendeu-se com brandura. – Mas eu vivo na mesma casa, deveria ter ao menos o direito de participar da decisão.

- Você não pára em casa um minuto. Não tem tempo nem pra respirar. Em que momento do seu dia você conseguiria ser informada sobre alguma coisa?

- Tomo café da manhã com eles, todos os dias. Hoje, justo hoje, que eu tenho uma palestra importante para o desenvolvimento da minha pesquisa, não vou poder participar porque soube em cima da hora e serei obrigada a buscá-lo no aeroporto. O meu pai tem caprichos suficientes pra mandar um motorista ir buscar o tal do estudante nova iorquinho. Eu estudo, e muito. Mas, não tenho a menor atenção por parte dos meus pais. Isso já está beirando o desrespeito.

- Tá, já chega! Para de reclamar e vai logo. Agradeça pela chance de sociabilizar. Minha bravinha chata! – Fê-la revirar os olhos e sorrir.

- Tá eu já vou! Mas você nem pra me defender, hein! Todo mundo idolatra o todo poderoso Daniel Hirst.

- Ele é mais legal que você! Não fica reclamando por bobagem!

- Reclamando, eu? Por favor! Eu to sempre estudando! Quisera eu ter tempo pra reclamar.

- Bem, isso é verdade! Melhor estudando. Fica menos chata! - ela lhe mostrou a língua, em resposta. – Vai logo, que deixa-lo esperando é mancada! – Apoiou a cabeça nas mãos e relaxou o corpo, sobre a cadeira.

Susan pegou suas coisas e saiu, jogando os cabelos ao vento. Steve gargalhou e respondeu à brincadeira, na mesma medida:

- Sabe que eu te amo, né? – Gritou para que ela pudesse ouvi-lo a certa distância. Ela se virou e mandou-lhe um beijo. Steve balançou a cabeça em negativo, pensando no quanto a adorava.

Susan caminhava pelas ruas de Cambridge. Ora parava para roubar morangos dos arbustos que floresciam por ali, ora contemplava as blue bells, nos jardins. Respirou fundo sentindo o cheiro que a chuva provocava. Riu, impressionada com a capacidade de mudar de humor tão repentinamente. Pouco mais de meia hora atrás estava indignada por ter de aturar um estranho em seu lar. Agora, talvez até quisesse encontrá-lo. De fato, sentia-se preterida e estava magoada. Sem mais pensar nisso, chamou um táxi.

A espera insuportavelmente eterna lhe causava agonia. A melodia caótica de sapatos e rodinhas, a doce voz que alertava e desesperava os passageiros e a tragédia grega dos que não partiriam irritavam Susan de maneira absurda. E nem sinal do nova-iorquino. Quinze para as seis e nada de ele aparecer. “Era só o que me faltava, esperar tanto tempo por alguém que não chegará”. Vendo que sua impaciência era irremediável, “afinal, o vôo pode ter atrasado”, tirou o Baudelaire da bolsa e, entretida com o poeta, nem notou que o maldito se aproximava. Sem tirar os olhos da leitura, sentiu um perfume conhecido. Custando a acreditar, considerou aquilo uma infeliz coincidência, e se forçou a continuar o que fazia. Mas algo a incomodava, conhecia bem aquele cheiro. E, por azar e sorte, estava certa. De repente, uma sensação estranha a dominou. Era angústia e expectativa, ao mesmo tempo, impossível explicar. Temendo o que não conseguiria evitar, olhou para cima, vagarosamente. A ansiedade, torturante. A confirmação, surreal. Seriam aqueles os mesmos olhos sedutores que lhe suplicaram por socorro? Estava atônita. Ele estava ali. Milagrosamente, estava ali.

Não autorizo cópia parcial ou integral dessa obra

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